(Texto publicado na Lócus Online, em 11/Setembro/2020)
Confundir o mensageiro com a mensagem é um dos atos mais comuns em educação.
Normalmente, nenhum médico confunde o remédio com a doença, ou o bisturi com os órgãos do paciente. Ele sabe que os meios e os instrumentos que utiliza no tratamento não são a própria saúde (assim como um juiz sabe – ou deveria saber – que usar uma toga preta ou o martelo para pedir ordem não são sinônimos de competência jurídica). Uma coisa são os meios, outra coisa são os fins. Mas, curiosamente, essa confusão é muito comum em educação.
No início dos anos 90, as francesas Isabelle Stal e Françoise Thom, no livro A Escola dos Bárbaros (1991), observaram como era assombrosa a firme crença de professores em uma grande renovação escolar tendo como pedra angular a tecnologia computacional. A perplexidade daquelas autoras ainda hoje nos serve de lição.
A atual situação de isolamento social imposta no combate ao coronavírus trouxe impactos visíveis para a educação. Da noite para o dia, muitas pessoas resistentes as inovações tecnológicas tiveram que aprender a operar, por necessidade, aplicativos, salas virtuais, programas de hangout, câmeras e microfones. Saber apresentar-se diante de uma câmera passou a ser uma competência profissional – inelutavelmente.
Esse inevitável mergulho na tecnologia trouxe a frente das discussões uma tendência que, antes do vírus chinês, já ganhava atenção – o ensino híbrido, metodologia que assume a integração profunda e a inclusão da tecnologia nas práticas educacionais (no Brasil, firmemente promovida pela Fundação Lehmann). Trata-se, no fundo, de uma “velha nova tendência” – a esperança que os meios melhorem a busca pelos fins. Sim, é razoável pensarmos que a avançada tecnologia atual possa contribuir para tornar as coisas mais interessantes em educação. Mas certamente seria um exagero noticiar que o ensino híbrido seja a “nova realidade da educação brasileira”. Novos métodos tecnológicos não resolvem problemas graves sobre o sentido da educação, a relevância do que é ensinado e o desempenho cognitivo dos estudantes. Contribuem, mas não podem resolver. Afinal, conversar com o carteiro não é o mesmo que ler a carta.
Há mais de 60 anos, na obra Rumos da Educação (1959), o filósofo francês Jacques Maritain chamava a atenção para os erros comuns cometidos na educação moderna. Entre eles, o mais caro seria o desprezo dos fins. O filósofo lembra que a educação é uma arte, e como tal utiliza meios, os mais variados possíveis, em direção a um objetivo. Se os meios acabam tomando uma prevalência sobre os fins, a educação se torna cega ao seu verdadeiro propósito. Mas, às vezes, os meios são tão bons e atraentes que nos fazem esquecer o fim visado.
As lições do passado sempre podem nos ajudar a compreender a ebulição do presente. E essas lições sempre mostram que a discussão fundamental em educação nunca deve desprezar os fins, por mais que toda a tecnologia, a mais avançada possível, aumente o nosso horizonte de possibilidades. Por acaso Sócrates é lembrado pelas sandálias que usava para andar por Atenas? Michelangelo por ter escolhido os melhores cinzéis, ou Machado de Assis por ter escolhido as melhores canetas? Sigamos o conselho de Northrop Frye: não confunda a trama com a história!