(Texto publicado na Lócus Online, em 31/Julho/2020)
Professores para quê?
Estariam os nossos professores atualmente a altura da essência da verdadeira educação?
Se voltarmos às origens da civilização Ocidental, encontraremos o famoso diálogo platônico Mênon (escrito no século III a.C.), no qual Sócrates propôs um argumento que acabou se tornando o grande paradoxo da educação ocidental: nenhum indivíduo busca aquilo que não conhece porque não sabe o que procurar, e nenhum indivíduo busca aquilo que já conhece porque não há necessidade. Logo, ninguém pode aprender ou ensinar nada a ninguém. Para provar esse argumento, Sócrates chama um escravo analfabeto da rua e começa a fazer certas perguntas a respeito de geometria, de modo que, com as respostas, o escravo vai desenhando um triângulo na terra. Questionado, Sócrates observa que nada fez, apenas despertou e retirou o que já havia dentro do indivíduo.
Evidente que ninguém aceita essa resposta socrática. É evidente que podemos aprender o que não sabemos; é evidente que podemos ensinar algo que os outros não sabem. Mas então sobre o que estava a falar Sócrates? A verdade é que se Sócrates não estivesse lá, dificilmente o rapaz teria descoberto por si só o que descobriu. Esta intervenção compõe justamente a essência da educação – a relação professor-aluno.
Em 1971, o pensador austríaco Ivan Illich publicou um ousado livro chamado Sociedade Sem Escolas. Depois de realizar uma espécie de diagnóstico da educação da sua época, concluiu que as escolas já não exerciam a educação de modo genuíno e eficiente, por isso seria melhor acabar com as escolas. Isso mesmo, acabar com as escolas como instituições educativas – a educação deveria ser um auto-aprendizado, a ser realizada nas relações cotidianas e sociais.
Além de Ivan Illich, outros autores surgiram nos anos 70 com propostas “anti-escolas” (Paul Goodman, Everett Reimer), defendendo que mudanças radicais na educação deveriam ser feitas. Apesar dos variados argumentos levantados em favor do fim da escola como instituição, Illich e os outros autores não conseguiram desfazer-se de um elemento: a necessidade da relação professor-aluno, mestre-discípulo.
Seja dentro ou fora de uma escola, seja um auto-didata ou aluno de um curso, todo aquele que busca o conhecimento terá de uma forma ou de outra um mestre. Seja em presença física ou não – sempre haverá uma relação com aquele que soube antes que você. E quando olhamos para essa especial relação, percebemos tanta coisa envolvida que é quase impossível defini-la.
O educador espanhol Victor Garcia Hoz dizia que existe uma educação visível (aquilo que é formal, como a instituição, as provas, o currículo, as regras) e uma educação invisível – todo o conjunto de elementos, características e fatores que não são explícitos e que compõe profundamente a educação. Ou seja, no fundo a educação é uma relação humana – relação que coloca em jogo a presença de dois seres humanos, com suas diferenças de caráter, idade, qualidades e saberes. O professor simplesmente não pode ser apenas um profissional, porque ele é um alguém presente na relação com o aluno. E como tal, suas ações têm consequências e extensões quase impossíveis de medir.
Georges Gusdorf, filósofo francês, dizia que o principal do ensino é algo que não se ensina, mas que é dado em acréscimo do que se ensina. E isso se aplica a todos os professores, independente do conteúdo ministrado. A nossa memória de adulto nos ensina isso: de nossos antigos professores, dificilmente recordamos exatamente o conteúdo trabalhado, e sim de algo que ultrapassava tudo isso, que não era explícito ou dito, mas que vinha de acréscimo. O modo de ser e cuidar do conhecimento, de se portar, de disciplinar e manter a ordem, de falar, silenciar, olhar, enfim, tudo aquilo que não é dito e que compõe uma personalidade. Isto tudo está lá, na relação entre professor e aluno, para além do conteúdo dito. E tudo isso compõe a educação.
A lição que a história nos mostra é que os grandes mestres não eram aqueles que encaravam sua atividade como simples profissão sem ter consciência de toda essa educação ‘invisível’, sem estar atento para o fato de que educação, em seu sentido genuíno, trata no fundo do destino dos homens, do como e o quê os indivíduos farão de suas vidas. Pensar que o mero ensino de um conteúdo a ser aplicado numa avaliação não tenha maiores consequências na vida de um aluno é demonstrar pouca visão. Porque educação, como em toda relação humana, requer cuidados. Agora, resta perguntar: quantos dos nossos professores possuem esta abertura de alma para compreender essa dimensão plena da educação?
DICAS DE LEITURA:
– Professores para quê? – Georges Gusdorf – Editora Martins Fontes
– Lições dos Mestres – George Steiner – Editora Record