(Texto publicado na Lócus Online, em 16/Março/2021)
A história nos mostra que muitos regimes autoritários adoravam essa psicologia – a cultura do denuncismo. Não por acaso, tem sido incentivada nas atuais circunstâncias e as consequências têm sido nefastas.
Muitas pessoas assumiram a defesa intempestiva do lockdown e das medidas restritivas como formas de combater a contaminação do vírus chinês. Muitas vezes, essa defesa é expressa na forma de ações que, ao seu ver, são dotadas de valor social e cívico: denunciar a vida alheia em nome da saúde pública, gerando batidas policiais em festas particulares, invasões a residências e detenção de familiares reunidos, abordagens de famílias fazendo picnic ou fechamento de pequenos comércios fisicamente impossíveis de gerarem aglomerações. A coisa não vai bem.
O sábio São Tomás de Aquino ensinou que um dos grandes problemas da moralidade humana não é aplicar uma regra geral as condutas, mas ter a percepção refinada em “ler” cada situação concreta que a vida nos apresenta, relacionando com as regras morais. Isso porque cada situação implica numa série de contradições, consequências e motivações variadas. O ser humano não julga igual a um computador que, invariavelmente, aplica fórmulas independentes do conteúdo dos arquivos.
No entanto, quando o indivíduo assume uma regra invariável e passa a fiscalizar a vida alheia com base nesta regra, certamente ele correrá o risco de não perceber a realidade com toda a clareza – porque sua atenção estará voltada exclusivamente para a regra geral, e não para a realidade. No caso atual, muitos que assumem o dever social de denunciar aglomerações em residências ou pequenos comércios em vilas e bairros, possivelmente já assumiram como válidas todas as narrativas oficias propagadas pelos governos estaduais, e deixaram de perceber o grau de realidade desta narrativa e das situações concretas.
Em São José-SC, por conta da denúncia de um vizinho, uma festa de aniversário acabou em detenção dos envolvidos; em Cuiabá-MT, um morador denunciou uma aglomeração em fila, só não mencionou que se tratava da entrega de apostilas escolares e kits de alimentação para população carente. Em Marília-SP, outra denúncia de aglomeração ignorou o fato de ter chovido e causado o recolhimento das pessoas a marquise do local. Em Atibaia-SP, um cidadão denunciou aglomerações ocorridas dentro de um condomínio residencial, admitindo que não havia casos de coronavírus. Os exemplos aumentam diariamente. Evidentemente, quando há o bom senso, o exercício da cidadania se torna algo responsável. Mas o exagero da cultura do denuncismo leva a tais absurdos.
A história nos mostra que muitos regimes autoritários adoravam essa psicologia – a cultura do denuncismo. O historiador Orlando Figes, no livro Sussuros: a vida privada na Rússia de Stalin, conta como a esfera da vida privada naquele país foi sendo destruída mediante o incentivo a denúncia, criando uma cultura da desconfiança e da mesquinharia. Os cidadãos eram incentivados a espionar a vida alheia, de modo a denunciar todo desvio de conduta ideológica ou não alinhamento com aquilo que o regime entendia como conduta correta. Basta recordar a história do jovem Pavlik Morozov (1918-1932), um menino que se tornou mártir e Herói da União Soviética por ter denunciado o próprio pai e avô. Estátuas, filmes e pôsteres do menino foram espalhados como incentivo a conduta ideal do cidadão responsável. Na Alemanha de Hitler, a bem doutrinada Juventude Nazista era incentivada a denunciar vizinhos e familiares pelo não alinhamento ao regime, criando uma geração de espiões da vida alheia, das origens familiares e das crenças particulares.
A responsabilidade individual é o fundamento das nossas ações – particulares e sociais. Evidentemente, em se tratando de uma situação sanitária de risco, a extensão das ações de um indivíduo contaminado, pode prejudicar outras pessoas, portanto sua responsabilidade envolve consequências a outros. Mas assumir a postura de fiscal da vida alheia, inevitavelmente, é estender o braço forte do Estado que abarca e deglute as liberdades dos indivíduos. A longo prazo, é certo, cria uma doença da alma.